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Boas almas

– Embalagem pra presente, por favor!

O que seria de um presente sem a sua embalagem?  Ninguém mais neste mundo poderia compreender melhor essa relação entre o presente e a sua embalagem do que Manolo. Em sua maneira de ver eram assim como corpo e alma. O presente em si seria o corpo e a embalagem, ah, a embalagem seria a alma. O corpo sem a alma, o presente sem a embalagem, um sem o outro seria algo morto, sem vida, sem graça alguma. Poderia alguém chegar para outro alguém apenas com o presente na mão sem embalagem, assim nu e frio como um cadáver em um necrotério? Difícil imaginar. Impossível, diria Manolo. Quando você compra alguma coisa para dar para alguém o presente já está pronto, fabricado, acabado. Você não interfere nele, não retira nem acrescenta nada. Com a embalagem é diferente. Nela está a sua parte. Nela você coloca o seu sentimento. Você vai embrulhando, dobrando, colando e aquele momento é o momento mágico e misterioso do seu sentimento para com a pessoa a qual deseja presentear. Por isso as embalagens continham sentimentos. Nelas Manolo podia ver as lágrimas de um pai emocionado com o nascimento de seu primeiro filho sem saber de que forma embrulharia o mundo, se pudesse, para dar de presente ao seu pimpolho que estava chegando; podia ver o sorriso sincero de uma mãe segurando em suas mãos um presente – como dádiva divina – que selava o fim de um relacionamento difícil com a sua filha já adulta; podia ver a gratidão com pesos infinitamente diferentes no coração de quem ajudou e no coração de quem foi ajudado: para o primeiro aquele presente era muitíssimo e para o segundo o presente seria sempre pouquíssimo, por mais valioso que fosse. Sim, as embalagens continham sentimentos, porém apenas bons sentimentos. Ou seriam simplesmente neutros como que para cumprir um protocolo ou seriam bons sentimentos. Jamais maus sentimentos. Seria igualmente impossível relacionar presentes com maus sentimentos. Assim via Manolo.

O impacto de ver mais uma embalagem de presente em uma lixeira era algo que durava muito pouco. No início esse impacto era mais duradouro. A pergunta permanecia mais tempo em sua cabeça: “por que alguém jogaria uma embalagem dessas fora?”. Com o passar dos anos passou a ser um impacto ligeiro, uma surpresa passageira. Não tinha mais importância o que os outros pensaram ou deixaram de pensar ao ficar com o presente e dispensar a embalagem. Se eles não as valorizavam, ali estava Manolo para valorizar o que lhe era mais importante: a alma. E a embalagem era a alma, a boa alma, o bom sentimento, os bons votos, as boas esperanças, os bons desejos. As embalagens traziam tudo isso com elas. E com essas boas almas Manolo povoava o seu paraíso. A sua casa já não tinha mais a forma de uma casa. Os cômodos eram tomados por embalagens de presentes desde o chão até o teto. Papéis coloridos, caixas de todas as formas, plásticos, sacolas, fitas de todos os tamanhos e cores e formas e demais adereços como selinhos dourados, prateados e até cartões que acompanharam muitos presentes. Apertava-se para andar dentro da sua casa. Eram caminhos construídos no meio de um mundo de embalagens de presente, só de presente. No banheiro apertava-se para usar o vaso sanitário, premido pelas embalagens. Há muito o box do chuveiro já não tinha função, repleto de embalagens. Fogo e fogão só do lado de fora da casa, longe, muito longe das suas boas almas, mas como já eram anos de povoamento, elas aos poucos se aproximavam das coisas lá de fora.

Fogo. Lembrou-se em um momento daquele supermercado que pegou fogo. Muitos supermercados hoje em dia colocam os hortifrutigranjeiros na entrada. Aquele supermercado colocava artigos para presentes na entrada. Na calçada havia um pequeno balcão onde ficavam as moças encarregadas de fazer as embalagens para presente. Sempre cansadas e enfadadas daquele trabalho. Havia uma delas, no entanto, que era totalmente diferente das outras. Nunca estava cansada ou enfadada. Pegava o presente, olhava para a sua geometria, seu volume, olhava sorridente para o cliente, estabelecia-se ali em frações de segundo uma ligação sentimental, sem palavras, e ela iniciava então mais uma obra de arte. As embalagens não eram iguais ou padronizadas. Eram diferentes umas das outras. Parecia estar contando histórias, cada uma diferente da outra ou dobrando como se fossem formas infinitas de origami. A destreza lhe permitia cortar o tamanho exato do papel. Tudo se dava em uma enorme velocidade mas que para Manolo era como se o tempo parasse para admirar mãos ágeis que cortavam e dobravam. No início ela estranhou a presença daquele homem pouco asseado que ficava ali como que hipnotizado pelo seu trabalho. Não passou muito tempo para que percebesse que aquele homem dava na verdade um valor exacerbado às embalagens que fazia. Nas datas comemorativas ele permanecia mais tempo, principalmente no Natal. Acabou-se o supermercado e da sua Gioconda que lhe custava horas diárias de admiração Manolo nunca mais teve notícia, pois na verdade nunca se falaram.

Os três filhos homens de Manolo, todos casados e vivendo em suas próprias casas, não sabiam mais o que fazer. Não sabiam também dizer se Núncia, a mãe Anunciación, ainda estivesse viva as coisas seriam diferentes. É possível que sim, pois foi a partir da morte de Núncia que as manias daquela esquisitice se agravaram.   Tinham chegado apenas os dois da Espanha, construíram uma vida juntos com grande sacrifício, deram uma boa condição aos três filhos nascidos no Brasil que foram se casando e Manolo passou a viver só em uma casa imensa depois que Núncia morrera. Roberto, o filho mais velho, resolveu então tomar uma atitude radical. Num dia em que o pai não estava na casa entrou com alguns ajudantes contratados e tiraram o que puderam dos lugares onde eram mais urgentes como banheiro e quarto onde Manolo dormia. Após aquele serviço dispensou os ajudantes e ficou esperando o pai chegar. O pai chegou. Logo percebeu a falta das suas embalagens. Não houve discussão, não houve palavras, não houve nada. Um ficou parado diante do outro, imóveis. Silêncio. As únicas coisas que se moviam eram as lágrimas que desciam pelo rosto de Manolo. Aquilo foi demais para Roberto. Aquela cena, aquela expressão de dor profunda, aquele olhar, aquelas lágrimas. Abriu-se uma ferida em seu coração.

Roberto reuniu os seus irmãos, contou-lhes o que havia acontecido e pediu: não tem jeito, vamos deixar o pai em paz com as suas boas almas.

 

 

Minha contribuição ao livro “Loucos por lixo” escrito em conjunto com Cristiane Kämpf (jornalista), Leila Taves (linguista), Marcela Marrafon (historiadora) e Olímpia Araújo (médica)  sobre os distúrbios psiquiátricos relacionados à compulsão pelo acúmulo de objetos e/ou lixo. Nov/2011.