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Os torturados

Certamente existirá alguém em um futuro não muito distante, se é que já não existe, que colocará em dúvida a existência dos ataques terroristas em 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Da mesma forma que já há quem negue o massacre de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, pode ser também que alguém venha a dizer que não existiram tortura e morte no Brasil durante o período do governo militar. Em nosso caso brasileiro penso não haver qualquer tipo de dúvida de que realmente houve pessoas torturadas e pessoas mortas naquela época. Isso é indiscutível. Mas deixemos a tortura de um lado e consideremos os torturados. Bem, sobre o torturado em si, a considerar caso a caso, sei que as pessoas diferem na sua maneira de reagir perante uma situação-limite em suas vidas. Há pessoas que simplesmente dão a volta por cima, como costumamos dizer, e levo-me a crer que estes casos são isolados, dada a gravidade da invasão física e moral sobre a vítima de tortura. Soube de um judeu, por exemplo, que perdeu toda a sua família durante a Segunda Guerra, restando-lhe apenas a mãe. Os dois sobreviveram à chamada “marcha da morte” dos nazistas, cruzaram o mar com quase nenhum recurso depois que a guerra terminou e com o tempo ele tornou-se banqueiro. Na sua idade avançada resolveu escrever sobre a sua vida. Para espanto geral, nem os seus subordinados mais próximos conheciam sua estória. Quando perguntado sobre a razão de ter escrito um livro, respondeu que era como um fantasma que precisava enfrentar, pois as terríveis lembranças o acompanhavam diariamente.

Numa outra oportunidade li em um jornal uma reportagem sobre os sobreviventes da Escola de Mecânica da Marinha em Buenos Aires durante o regime militar argentino. Olhando aquelas fotos não era necessário ler mais nada para nos convencer de que aquelas pessoas foram realmente brutalmente torturadas: o amargo da vida se destilava nos seus olhos e nas suas expressões. Depois de muitos anos ainda estavam vivendo à custa de terapias e medicamentos, pois a passagem por aquele lugar tinha colocado por terra todo um projeto de vida e a tornado um verdadeiro inferno para elas, independentemente das razões – algumas totalmente injustificáveis – que as levaram a ser torturadas.

Esses detalhes para mim tornam-se essenciais quando procuro identificar um torturado de verdade: sobreviveu, mas ficaram as sequelas. Sequelas de ordem física, psicológica e emocional que a pessoa realmente vítima de tortura carrega pelo resto da sua vida e não gosta de se lembrar do passado. Pelo contrário, muitas vezes esconde-o. No entanto, a leviandade com que muitas vezes se fala que esta ou aquela pessoa foi torturada faz-me cada vez mais cético em relação a uma parcela dos torturados. Pelo visto, há uma quantidade de torturados por aí levando suas vidas tranquilamente, alardeando a sua tortura, falando alto para que um número cada vez maior de pessoas possa ouvir, procurando tirar proveito de uma suposta situação e nem um pouco preocupados em enfrentar os seus fantasmas, porque eles simplesmente não existem.

Confesso que falo cotidianamente com os meus botões e aqui disposto encontra-se apenas e nada mais nada menos do que uma acalorada discussão travada com os meus próprios botões ao longo destes anos. Discussão esta iniciada na década de 1970 através de um acontecimento ocorrido com um estudante universitário chamado Rabanete. Claro que era seu apelido. Até hoje não sei o seu nome verdadeiro, mas todos o chamavam assim. O Rabanete era comunista de carteirinha, vociferava contra o sistema, vociferava contra o governo militar, vociferava contra tudo o que está aí e enfrentava bravamente as forças de segurança do regime, porém desde que fosse sempre a uma distância muito, mas muito segura para ele. Em 1977 contava mais ou menos com uns 25 anos de idade. Jovem, em um dia ensolarado daquele ano andava sem camisa pelo centro da cidade resolvendo alguns assuntos particulares quando se viu na necessidade de tirar cópias de certos documentos pessoais. Bem, não havia lugar com mais máquinas de fotocópias do que o Palácio da Justiça. Dirigiu-se para lá e foi impedido de entrar por estar sem camisa. O segurança, devidamente uniformizado em seu lugar na entrada do prédio, jovem como ele, porém bem mais forte fisicamente, pediu gentilmente para que ele colocasse a sua camisa, pois não era permitida a entrada de pessoas sem camisa naquele recinto. O Rabanete recusou-se a vestir a camisa e começou a discutir com o segurança, falando alto, argumentando e gesticulando. Francamente não sei o que passou pela cabeça do Rabanete naquele momento. Já cheguei até pensar que ele imaginou iniciar ali uma revolução através de uma desobediência civil que culminasse numa espécie de efeito cascata em que todas as pessoas fossem uma a uma entendendo a sua atitude e empunhando a sua bandeira na mais romântica das mais pacíficas revoluções, uma “Revolução dos Rabanetes”, quem sabe?

O segurança, rapaz simples e zeloso de seu emprego, estaria ouvindo pacientemente o seu discurso até hoje não fosse a decisão repentina do Rabanete em querer forçar a sua entrada. Nesse momento o segurança se viu na necessidade de agarrá-lo com força e colocá-lo para fora, empurrando-o, não sem antes dar-lhe um tapa na cabeça para intimidá-lo, querendo dizer com isso que a coisa se tornaria mais séria se ele continuasse a insistir em querer entrar sem camisa no Fórum.

Pronto! Acabava de se consumar o momento de maior glória na vida do Rabanete e aquele tapa na cabeça viria a coroá-lo. Era exatamente o que faltava para completar o seu currículo, um empurrão e um tapa na cabeça. Aquilo foi simplesmente o máximo, foi perfeito. Voltou dali mesmo para casa tão feliz que os afazeres no centro da cidade ficariam para outro dia.

Bem, cada um vai tomando o seu rumo na vida e passei um bom tempo sem ter notícias do Rabanete. No entanto, poucos anos mais tarde tive ainda a oportunidade de tornar a vê-lo, só que desta vez no horário eleitoral gratuito:

VOTE EM RABANETE

VOTE POR JUSTIÇA SOCIAL

FOI TORTURADO PELAS FORÇAS DE SEGURANÇA

DO REGIME MILITAR NA DÉCADA DE SETENTA