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Slogorn!

Alguns gritos de guerra ficam tão conhecidos que resistem ao tempo e também ultrapassam as fronteiras do lugar onde seus guerreiros gritavam naquele momento de vida ou morte. Mais morte do que vida, muitas vezes. De qualquer forma, atrás de um Slogorn! seguia-se apenas o sofrimento: mães sem seus filhos, mulheres sem seus maridos, filhos pequenos sem seus pais, homens mutilados, mulheres violentadas, terras e lavouras arrasadas. Talvez ainda dominação e escravidão por um longo tempo, depois de um Slogorn! Não era diferente com um Banzai! usado pelos pilotos kamikazes durante a Segunda Guerra Mundial ou o conhecido Sieg Heil! usado pelas tropas alemãs no mesmo conflito, entre tantos outros gritos de guerra em suas respectivas línguas e específicas motivações. Alguns permaneceram em seu contexto original e outros mudaram totalmente as suas conotações. Por exemplo, Hurra!, palavra derivada do verbo matar em língua turca, já foi um grito de guerra usado inclusive por exércitos de diferentes nacionalidades, significando assim um aumento considerável de morte e sofrimento atrás de um Hurra! Hoje é possível ouvir essa palavra sendo gritada até mesmo em festas infantis. Mas nada se compara ao grito de guerra de alguns séculos antes de Cristo pertencente aos antigos clãs celtas: Sloooogooooooorn!!

Slogorn transformou-se em Slogan. Hoje Slogan é uma palavra fácil em todo o mundo. Há quem lhe dê uma definição nestes tempos modernos, já que não podemos mais dizer que ele é um grito de guerra que arrasta após si um mar de lágrimas e sofrimentos sem tamanho. Pelo contrário, ele anuncia a minha, a sua, a nossa suprema felicidade, mas de forma alguma deixou de ser um grito de guerra em seu conteúdo. É uma guerra contra nossa tristeza, nossa infelicidade, nossa incapacidade, nossa falta de beleza, nossa ignorância, nossas frustrações, guerra contra até mesmo as rugas inevitáveis das mulheres e contra as inevitáveis quedas de cabelo dos homens. Não há como medir a extensão dessa guerra nem no tempo e nem no espaço. Há sim como medir ou pelo menos ter uma noção da causa dessa guerra: o que ela pretende é nos proporcionar o máximo de felicidade, o paraíso na terra.

Prepare-se então para o que vem depois de um Slogorn! nos dias de hoje na vida de uma pessoa. Vamos chamar essa pessoa de Devanir, que é um nome tanto masculino quanto feminino em nosso país.

Já ao nascer Devanir será um bebê muito mais sequinho por dentro e por fora, embora a empresa fabricante das fraldas não esclareça o que signifique estar seco por dentro e por fora. Mas caso haja assaduras, haverá a pomada sempre à mão, proteção para toda ocasião; proteção e carinho à flor da pele. Em sua primeira infância haverá todo dia uma nova brincadeira, nenhuma delas se repetirá. Se Devanir entrou na escola em 1961, então deve ter ainda em casa e para uso das próximas gerações o calçado apropriado para a escola e com a sola que não descola. Ah, a escola. Nada como um intervalo da aula para poder ir à cantina. Nada como a pausa que refresca, isso é que é, é isso aí. Embora antes de ir para a escola Devanir tenha passado em seu pão a margarina que luta por um café da manhã mais feliz, é difícil resistir aos salgadinhos: você vai ficar maluco por ele. O material escolar é para Devanir sua companhia para a vida toda. À medida que Devanir vai crescendo também vai percebendo que o Slogorn! dá vida e caráter a objetos inanimados. Mas tudo com o intuito de fazê-lo(a) se sentir mais seguro(a) e mais feliz. Em qualquer meio de transporte haverá um amortecedor que será o melhor amigo do carro e do dono do carro. Os próprios postos de gasolina serão apaixonados por carro como todo brasileiro e sem dúvida o frentista terá também o óleo para motor de quem mais entende de óleo no mundo e que é mais que óleo, é engenharia líquida. A própria vida roda melhor, desde que seja com aquela marca de pneu.

Chegando a sua maioridade Devanir poderá ele(a) próprio(a) decidir entre ser feliz ou ser ainda mais feliz diante de tudo que se apresentará em todos os lugares para onde for, quase que absolutamente. Ao comprar um simples copo d’água ela será água pura da montanha. Mas se preferir um refrigerante, o simples ato de abri-lo levará Devanir a abrir a felicidadeviver o que é bom e vivenciar emoção pra valer. Abrir uma conta em um banco é que deveria ser, sim, abrir a felicidade: tem aquele que está o tempo todo com você ou simplesmente é todo seu, simples assim. Há outro que é o banco da sua vidafazendo mais que o possível. Isto sem falar naquele que tem orgulho dos seus clientes. E os demais Quem pensa, tem! Pode entrar que o mundo é seu. Perfeito para você. Mais que um banco. Nem parece banco. O banco único. Bancando os seus sonhos. Sonha Devanir. Devanir sonha e devaneia. Em seus devaneios há objetos e objetos de consumo. Enquanto sonha, morde o bolo feito com aquele açúcar cuja única razão de sua existência é fazer a sua vida mais doce. E como declarar o seu amor para a(o) sua/seu namorada(o) se o saquinho de tempero já dissera absolutamente tudo? Assim, poético, com rima e tudo, parece uma espécie de Hai Kai perfeito, já que o fabricante tem origem no Oriente: Só o amor tem este sabor. Devaneia, Devanir, passa a sua juventude olhando para um carro chamado desejo.  Sua grande conquista. Viva o novo. Um passo a frente. Desenhado para viver, construído para durar. Raça forte. Devanir quer viajar e aquela agência tem a melhor maneira de viajar. Devanir, você nasceu para voar. E quem te levará tem paixão por voar e servir, tem um estilo de voar. Chegou a hora, já é tempo de ser mais feliz e não somente feliz. Acredite na belezaVocê pode ser o que quiserLiberte toda a beleza dos seus cabelosPorque você merece. É preciso ter a qualidade que a vida merece. Ter suas roupas em boas mãos, porque o mundo trata melhor quem se veste bem. Ter o melhor sapato deste país. E de outros. Ter uma vida mais gostosa. Ter um bem estar instantâneo. Ser você em primeiro lugarPorque a vida é agora.

A velhice chegou. Chama o velho que vem coisa boa. A velhice chegou, mas perfumada até o fim. Slogorn! do início ao fim da vida, desde o nascimento até a morte de Devanir. Minto. Até depois da morte de Devanir. A gente vai mais fundo. A guerra empreendida para levar felicidade aos que podem pagar por ela vai além da morte. Durante a vida soube que o importante é ter saúde, ter saúde em primeiro lugar e ter saúde ao seu alcanceQuer pagar quanto? Viver bem não tem limites.

Daqui a pouco chega o agente funerário.  Devanir pagou. O seu plano funerário é de uma empresa cujo slogan é nada mais nada menos que fica frio que nós cuidamos de tudo.

Descanse em paz Devanir.

 

 

Minha contribuição ao livro “Loucos por lixo” escrito em conjunto com Cristiane Kämpf (jornalista), Leila Taves (linguista), Marcela Marrafon (historiadora) e Olímpia Araújo (médica)  sobre os distúrbios psiquiátricos relacionados à compulsão pelo acúmulo de objetos e/ou lixo. Nov/2011.