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Muro de Berlim

 

Carta de funcionário do IFGW compõe livro editado pela Secretaria de Estado da Cultura 06/05/2009 – 12:32

  • Imagens Foto: Valéria Abras/Prefeitura de Campinas

    João Pereira Góes Filho, funcionário do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp, foi um dos 120 selecionados, entre 15 mil concorrentes, na campanha ´120 Anos de Abolição – Racismo: se você não fala, quem vai falar?´ – para participar da publicação do livro Racismo: São Paulo Fala. Promovido pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Campinas, o concurso consistiu do envio de cartas por pessoas que já sofreram algum tipo de discriminação racial. A cidade de Campinas enviou 91 cartas e apenas três delas foram escolhidas. A cerimônia de lançamento do livro foi realizada no dia 24 de abril, no Salão Vermelho do Paço Municipal. De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, o livro não será comercializado, mas distribuído em todas as escolas municipais e os professores terão mais um instrumento para abordar o assunto. Para o ex-secretário de Educação, Graciliano Neto, “o livro tem uma simbologia forte porque Campinas foi a última a abolir a escravatura”, lembrou. Para Góes, a escolha de sua carta foi motivo de muita surpresa. O episódio aconteceu em 1988, em Berlim Oriental, quando o Muro ainda dividia as duas Alemanhas. Góes, que tem pele branca, caminhava com seu amigo Geraldo, que é negro. E percebeu que soldados norte-americanos negros cumprimentavam apenas seu amigo. “Foi uma situação inusitada, que eu nunca tinha vivido, e senti que era pelo fato de eu ter pele branca. De lá para cá ficou mais fácil me colocar no lugar de uma pessoa que sofre discriminação”, contou Góes. Leia, abaixo, a carta publicada na íntegra:

Muro de Berlim 

Vi que ia demorar na sala de espera do consultório médico. Peguei uma daquelas revistas e chamou-me a atenção uma reportagem sobre mulheres centenárias de diferentes países. Tinha a chinesa, a francesa, a americana, a africana, todas com mais de cem anos, relatando suas experiências de vida. A certa altura leio que a africana viu um homem branco pela primeira vez na vida aos 35 anos de idade! O tal homem seria um inglês andando de bicicleta. Parei ali, tentando imaginar o impacto de tal encontro para aquela mulher. Não consegui imaginar outra coisa: no lugar dela seria como se eu estivesse diante de uma barata de um metro e oitenta andando de bicicleta. Lembrei-me da dona Eva, nascida na primeira metade do século XX em Zittau, já quase Polônia, lugar de gente muito branca. Disse-me uma vez que na sua infância sabia da existência de negros e orientais por causa dos circos estrangeiros que eventualmente paravam naqueles lugares. A menina branca que vê o artista negro ou oriental, a mulher negra que vê um branco pela primeira vez, ambas sem uma opinião formada, pré-estabelecida ou pré-conceituada. Vê que é gente, meio queimada, mas é gente. Vê que é gente, meio desbotada, mas é gente. E praticamente mais nada, porque afinal não convivem, não fazem parte do seu meio. Lembrei-me então da primeira vez que me senti discriminado por causa da minha cor. Na ocasião eu não era uma criança inocente nem estava saindo de uma aldeia do interior da África pela primeira vez. Sabia mesmo a razão de tanta polêmica gerada nos EUA em 1968 pela cena em que Charlton Heston diz ao que o aprisiona: “Tire essas patas fedorentas de cima de mim, seu macaco sujo!” como também já tinha me emocionado ouvindo Wilson Simonal cantar “Tributo a Martin Luther King” em homenagem ao pastor negro assassinado naquele mesmo ano. Bem, numa tarde de sábado de 1988 andávamos próximos ao muro de Berlim, o Geraldo e eu, ambos brasileiros e juntos na Alemanha por motivo de trabalho. De repente começamos a cruzar com soldados americanos que diligentemente cumprimentavam apenas o Geraldo e me ignoravam total e solenemente. Era uma discriminação boba, gratuita, mas tava na cara que era por causa da minha cor. O impacto daquele aparente desprezo – que pude sentir na pele, literalmente – despertou em mim um turbilhão de indagações que não caberia nestas linhas. E dou graças a Deus por isso. Graças a Deus? Sim, porque tanto o Geraldo como todos aqueles soldados eram negros. Eu era o único branco nessa história. Pois é, acredite ou não, de lá para cá ficou mais fácil me colocar no lugar de uma pessoa que sofre algum tipo de discriminação. Por mais boba que seja.

 

 

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