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Para sermos iguais

 

O texto abaixo é o mesmo “Muro de Berlim”. Neste, porém, há o acréscimo de diversos elementos para enriquecer a narrativa. Sob o novo nome “Para sermos iguais” participei do concurso cultural da editora Guemanisse/RJ em 2010 e este texto foi selecionado para fazer parte do livro “Prosapoemas – Volume 1”. Há um exemplar na BIF (Biblioteca do IFGW).

Vi que ia demorar na sala de espera daquele consultório médico. Sempre senti um certo nojo daquelas revistas velhas e surradas, manuseadas diariamente. Com as pontas dos dedos, como se isso ajudasse em alguma coisa, comecei a folhear uma delas um tanto impaciente. Descubro, no entanto, uma reportagem que me fez por uns instantes esquecer o asco e a impaciência. Falava sobre mulheres centenárias. Era uma revista feminina que tivera a interessante idéia de reunir mulheres centenárias de diferentes países – ou continentes – para que pudessem falar um pouco de suas experiências pessoais. Tinham mais de cem anos, estavam lúcidas e com boa memória. Havia a francesa, a chinesa, a americana, a africana. A francesa conheceu Vincent van Gogh e, como todos os que o conheceram também, falava sobre a sua personalidade angustiada; a chinesa teve os pés atados e apertados durante anos para que não crescessem assim como milhões de suas compatriotas ao longo da história da China por causa daquela insana obsessão por pés femininos pequenos; do relato da americana nada guardei, mas a africana, bem, a africana diz a certa altura ter visto um homem branco pela primeira vez na vida aos 35 anos. O tal homem desse primeiro encontro teria sido um cidadão inglês andando de bicicleta. Parei ali tentando me colocar no lugar dela, pois já não me interessava tanto o resto da reportagem, que acabei lendo rapidamente. Deixei a revista de lado e fiquei pensando: uma mulher negra, adulta, que vê um homem branco pela primeira vez na vida. Aos 35 anos de idade! 35 anos é uma vida. Uma vida passada só entre negros. Saberia ela da existência de brancos antes dessa experiência? Alguém já teria lhe contado ter visto gente branca? Ouvir falar não é o mesmo que ver. É preciso imaginar. E eu fiquei imaginando o impacto daquele encontro para aquela mulher que saía de sua pequena aldeia pela primeira vez. Em seu lugar eu teria tido uma reação assim como ao virar uma esquina me deparasse com uma barata andando de bicicleta. Uma barata de verdade com pernas, asas e antenas. Uma barata de um metro e oitenta de altura mais ou menos pedalando calmamente, feliz em uma tarde de domingo.

As aulas de alemão eram com a dona Eva. Eram aulas particulares além de um curso regular que eu freqüentava em uma escola de idiomas, pois quanto mais se aproximava o dia de eu ir para aquele meu primeiro estágio na Alemanha mais me preocupava, entre tantas outras coisas, a conversação, e estávamos ali apenas para conversar em alemão, levando em consideração alguns critérios de avaliação e correção. Era uma senhora de seus sessenta e poucos anos mais ou menos nascida em Zittau, pequena cidade alemã do leste já quase Polônia. De qualquer maneira um lugar de gente muito, muito branca. Há muito tempo eu tinha vontade de lhe fazer uma pergunta, mas sentia-me um pouco constrangido com o assunto. Finalmente tomei coragem e perguntei: na sua infância, na década de 1930 na Alemanha, a senhora já tinha visto uma pessoa negra? Era uma curiosidade minha e a sua resposta foi sim, claro, quando paravam os circos estrangeiros naquela região. Aliás, não apenas negros como orientais também.

Na sala de espera agora estávamos apenas os três: a mulher negra que via um homem branco pela primeira vez na vida aos 35 anos de idade, a menina branca que eventualmente via um negro em um circo estrangeiro e eu. A mulher olharia aquele ser humano diferente e logo voltaria ao seu convívio unicamente com negros. Veria que se tratava de gente, um pouco desbotada, mas gente. Ela volta para a sua aldeia e não sabe quando encontrará um branco novamente. A menina por sua vez olharia aquele ser humano diferente e logo voltaria ao seu convívio unicamente com brancos. Veria também se tratar de gente, um pouco queimada, mas gente. O circo vai embora e ela não sabe quando encontrará um negro novamente. E praticamente mais nada, pouca ou nenhuma opinião formada, pouco ou nenhum pensamento preestabelecido e muito menos pré-conceituado. Cada um deve ter o seu lugar para viver seja ele qual for. Não fazem parte do meio ou da convivência. É apenas um contato rápido, distante, visual, sequer se ouve a voz, sequer se conhece o comportamento ou a maneira de viver.

Brancos e negros, negros e brancos, discriminação, miscigenação, preconceito, racismo, dívida, reparação e mais uma enorme quantidade de palavras que orbitam em volta do assunto ou problema ou questão racial que ninguém em lugar algum nem branco nem negro sabe se deve falar que ele é preto ou negro ou moreno ou de cor ou afro-americano ou afro-brasileiro ou afro-descendente com receio de ser ofensivo ou pejorativo ou politicamente incorreto. Quem já não tentou imaginar um mundo onde as pessoas estivessem todas devidamente separadas pela sua cor? E num segundo momento este mesmo dono de tal imaginação já não tentou imaginar um mundo inteiro completamente miscigenado onde todos absolutamente tivessem a mesma cor? Quem em todo este mundo está completamente isento de um assunto eternamente tão dentro de cogitação?  Talvez o negro que passe toda a sua vida somente entre negros ou o branco que passe toda a sua vida somente entre brancos. Mas, nos dias de hoje, quem poderá saber?

Naquela altura dos meus pensamentos eu não poderia deixar de me lembrar de quando me senti discriminado por causa da minha cor pela primeira vez. Tal lembrança seria inevitável. Aliás, na ocasião eu não era uma criança inocente e também não estava saindo de uma aldeia do interior da África pela primeira vez.

“Tire essas patas fedorentas de cima de mim, seu maldito macaco sujo!”

Era 1968.  Um dos piores anos na história dos Estados Unidos para se proferir uma frase dessas. Tudo bem que era em um planeta de macacos, no momento da prisão do humano Charlton Heston em uma história de ficção transformada em um filme que estreava no dia 23 de março de 1968. Mas os ânimos estavam demasiadamente exaltados e a sensibilidade era tanta que uma frase dessas num filme daquele naqueles dias tão próximos do dia 4 de abril não poderia de forma alguma ser vista como uma frase inocente. Para os negros. Para os brancos por sua vez não agradava muito ver humanos brancos enjaulados e escravizados por macacos, pois parecia um recado dado por alguém que queria uma desforra pelo que os negros sofreram ao longo da história. Apenas 13 dias depois da estréia chega o tão próximo dia 4 de abril e o pastor negro Martin Luther King seria assassinado. Nada a ver com o filme, claro, mas o ambiente estava muito pesado, era um momento infeliz para uma temática tão incendiária como aquela. E naquele mesmo ano de 1968 eu ainda me emocionaria ouvindo Wilson Simonal cantar “Tributo a Martin Luther King”, não sem antes vê-lo desejar que seu filho não sofresse tudo o quanto ele já havia sofrido por causa da sua cor. Enfim, era o eco da tal questão racial lá nos Estados Unidos e eu tinha noção de tudo isso quando me senti discriminado por causa da minha cor pela primeira vez.

O estágio na verdade era na antiga Alemanha Oriental, o país comunista mais desenvolvido dentre todos os países comunistas do mundo. Jena era a cidade onde estávamos e se localizava ao sul, na Turíngia, distante de Berlim cerca de quatro horas de trem.  O ano era 1988. A televisão estatal não deixou de mostrar o show Free Mandela em Londres pela libertação de Nelson Mandela na África do Sul, o que de fato se daria dali a dois anos.

1988: emblemático ano para o Brasil, o país onde era possível encontrar um rabino que fazia circuncisão para árabes e judeus, os quais por sua vez enxergavam esta terra como um oásis de paz onde podiam coabitar pacificamente um ao lado do outro sem o temor de bombas ou túmulos profanados. Bem, se um país tem essa incrível capacidade de unir tais pontas, praticamente não haveria neste mundo pontas impossíveis de serem unidas nesse lugar, ainda que fosse uma ponta negra com outra branca. Mas eu sabia que no Brasil haveria de ter – pois o ano exigia – ao menos um momento de reflexão sobre o histórico assunto. Ou histórico problema. Ou histórica questão racial. Tive uma noção mais exata no dia em que passaram alguns brasileiros por Jena e deixaram uma revista brasileira de circulação nacional cuja longa reportagem de capa era sobre a dívida do país para com a nossa população negra após cem anos do fim da escravidão, ainda que jamais tenhamos usado entre nós a palavra “Apartheid” ou a sua instituição.

Era uma tarde de sábado desse emblemático ano de 1988, ano em que por coincidência se arredondavam as efemérides dos problemas raciais em diferentes lugares ou talvez simplesmente fosse apenas um ano que rimava com os anos de 1888, 1968 e com o próprio de 1988, este agitado pelos movimentos internacionais para a libertação de Mandela e o fim do regime de segregação racial na África do Sul iniciado em… 1948. Tarde tranqüila, ensolarada e muito fria. Estávamos passeando próximo ao muro de Berlim, o Geraldo e eu, ambos brasileiros e juntos na Alemanha Oriental no mesmo programa de estágio. Não víamos a hora de poder chegar mais perto do muro, embora fosse impossível tocá-lo a partir do lado oriental. Era aquela a primeira vez em que ali estávamos. Deste lado oriental os soldados eram russos e alemães que não tinham permissão para passar para Berlim ocidental. Tivessem eles tal permissão, com certeza a maioria não voltaria nunca mais. Mas deste lado também era possível encontrar soldados americanos ou franceses ou ingleses que eventualmente vinham passear em Berlim oriental e depois voltavam para o outro lado. Foi assim que naquela tarde, na primeira vez em que ali estávamos, andávamos por uma rua e conversávamos não muito distante do muro. De repente vinha em sentido contrário um grupo de soldados americanos. Nós passávamos por eles e eles diligentemente cumprimentavam apenas o Geraldo. Quanto a mim, ignoravam-me total e solenemente, como se eu simplesmente não existisse. Claro que nunca tínhamos nos encontrado antes, tava na cara que era por causa da minha cor, não havia absolutamente nenhuma outra razão para aquele comportamento.  Era uma discriminação boba e gratuita. O aparente desprezo que senti – literalmente – na própria pele me colocou dentro de um turbilhão de indagações, pois jamais tinha me sentido antes em tal situação. E na verdade não sei como dar graças a Deus por isso. Graças a Deus? Sim, porque tanto o Geraldo como todos aqueles soldados que passavam por nós eram negros. Eu era o único branco nessa história. Pois é, acredite ou não, de lá para cá ficou bem mais fácil me colocar no lugar de uma pessoa que sofre algum tipo de discriminação. Por mais boba que seja.

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