Afinidades cultivadas

Aproximação entre os países dos Brics rende frutos científicos, mostra estudo

artigo publicado na Revista Pesquisa FAPESP

BRUNO DE PIERRO | ED. 227 | JANEIRO 2015

Em julho de 2014, o bloco dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) criou um banco de desenvolvimento com capital de US$ 50 bilhões para financiar obras de infraestrutura de interesse comum. Assim como na economia, a aproximação dos cinco países rende frutos no âmbito da ciência – e ajudou a alavancar colaborações de pesquisa. É o que mostra um estudo divulgado na edição de dezembro da revista Scientometrics, ao analisar a produção de artigos científicos e de trabalhos publicados em conferências escritos em coautoria por pesquisadores de países do bloco, entre 1996 e 2012. “O objetivo da pesquisa foi investigar a força das colaborações científicas entre os Brics. Observamos que o advento do bloco teve um papel nesse processo”, diz Ugo Finardi, pesquisador do National Research Council da Itália e autor do trabalho, que analisou artigos publicados em mais de 20 mil periódicos indexados na base de dados Scopus, da editora Elsevier.

O estudo mostra que, em 2000, cerca de 8% do total de trabalhos de autores brasileiros publicados com pesquisadores do mundo todo foi feito em colaboração com colegas dos Brics. Já em 2012 esse percentual havia subido para 14%. Embora não figure como o principal parceiro dos demais países do grupo, o Brasil tem cooperado em áreas nas quais se destaca, como nas ciências médicas e da saúde. Nos últimos anos, por exemplo, cresceu a afinidade com a África do Sul nesses campos do conhecimento, dado que surpreendeu Finardi. “A forte colaboração entre Brasil e África do Sul em ciências médicas possivelmente decorre do interesse comum em desenvolver novos tratamentos para doenças negligenciadas, como malária e Chagas, e também para a Aids”, afirma.

A Rússia, no entanto, é o país dos Brics com o qual os pesquisadores brasileiros mais interagiram. No total, somam-se mais de 3.777 artigos publicados em coautoria entre 1996 e 2012, em áreas como matemática, física, química, ciências biológicas e agrícolas e ciência dos materiais. Para Edgar Dutra Zanotto, coordenador do Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a relação do Brasil com a Rússia é direcionada para as ciências básicas e áreas específicas nas quais os países têm experiência e interesses em comum. Ele cita o caso da pesquisa com vidros. “A Rússia é uma potência na área de vidros há mais de 30 anos. Para quem pesquisa nucleação e crescimento de cristais em vidros e suas propriedades físico-químicas, estar em contato com pesquisadores russos é fundamental”, diz ele. Cerca de 25% dos 200 artigos de Zanotto catalogados na base Scopus desde 1977 foram escritos em coautoria com russos, alguns radicados nos Estados Unidos.

A exemplo dos sul-africanos, a experiência brasileira em ciências médicas também tem motivado a vinda de russos ao país. Em outubro de 2010, o neurocientista russo Vassiliy Tsytsarev, atualmente na Escola de Medicina da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, passou uma temporada no laboratório de Esper Cavalheiro, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com apoio da FAPESP, na modalidade auxílio visitante do exterior. Nascido e formado na Rússia e com passagens pelo Japão, onde fez dois pós-doutoramentos, Tsytsarev mora desde 2005 nos Estados Unidos, onde trabalha com modelos animais para estudos de epilepsia. Há tempos ele se corresponde com Cavalheiro, cuja produção científica já conhecia. “Os russos sempre foram orientados a colaborar com países da Europa ocidental e com os Estados Unidos, mas agora muitos estão atentos a oportunidades de colaboração internacional com o Brasil”, diz Tsytsarev.

A preferência por colaborações com pesquisadores de países centrais é um dos pontos discutidos no estudo de Finardi. O italiano observou uma forte interação dos Brics com os Estados Unidos e a Alemanha e verificou que os cinco países ainda colaboram mais com as duas potências da ciência do que entre si. No caso do Brasil, mais de 20% dos trabalhos em coautoria são resultado de cooperação com norte-americanos. Para Elizabeth Balbachevsky, professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), os grandes centros de pesquisa mundiais seguem numa posição de superioridade em relação aos Brics. “Apesar do aumento da produção científica em países emergentes, a qualidade da pesquisa é bem mais forte nos Estados Unidos e na Europa. Seria contraproducente para um país emergente dar prioridade a parcerias com centros também emergentes”, diz ela.

A China parece saber bem disso. Trata-se do único país do bloco que praticamente manteve o percentual (4,6%) de artigos publicados em coautoria com outros membros dos Brics em toda a série histórica analisada. A África do Sul, por outro lado, apresenta o maior índice de artigos publicados com outros Brics, aproximadamente 11%. “A África do Sul é o único do bloco que tem o sistema de pesquisa menos consolidado, em parte porque passou muitos anos isolada por conta do apartheid. A articulação com os outros Brics representa para o país uma forma de ganhar espaço, aos poucos, na rede de pesquisa mundial. É uma porta de entrada”, avalia Elizabeth Balbachevsky.

Embora priorize outros países, a China continua na posição de principal colaboradora com os Brics (ver gráfico). A parceria que rendeu o maior número de artigos científicos, por exemplo, foi entre China e Rússia, que totalizou 6.343 artigos publicados em coautoria. “É claro que, quanto maior a produção científica do país, maior é a probabilidade de colaborar com outras nações”, explica Finardi. E no caso de China e Rússia, diz ele, ambos têm um grande número de pesquisadores. “A força da relação entre os dois países também é explicada pelo passado em comum de regimes socialistas”, completa. A China é o segundo do bloco com o qual o Brasil mais se relaciona, especialmente nas áreas de engenharias, ciências sociais e humanidades, seguida pela Índia e por último pela África do Sul.

Segundo Peter Schulz, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma contribuição do trabalho de Finardi é mostrar que as relações do Brasil com a Índia e a África do Sul são mais fortes do que se supunha. “Os dados levantados na pesquisa podem, assim, ser úteis para justificar a criação de programas de colaboração entre esses países, como o Programa de Apoio à Cooperação Científica e Tecnológica Trilateral entre Índia, Brasil e África do Sul (Ibas)”, diz ele. Inaugurado em 2003, o programa lançou projetos em várias áreas da ciência, como nanotecnologia, cujas pesquisas atualmente estão suspensas, aguardando novo financiamento.

Durante alguns anos foram estabelecidas parcerias, especialmente entre brasileiros e sul-africanos na área de nanotecnologia. “Esta área tem crescido na África do Sul e apresenta um nível de desenvolvimento científico parecido com o nosso”, diz José Antonio Brum, professor da Unicamp e coordenador adjunto de Programas Especiais da FAPESP. Ele foi o responsável pela área de nanotecnologia dentro do programa Ibas no Brasil e, nos últimos quatro anos, acompanhou de perto o avanço sul-africano nesse campo ao integrar o Conselho Nacional de Nanotecnologia daquele país. “Os pesquisadores de lá têm muitos projetos para o desenvolvimento de estruturas nanométricas para filtragem da água, um assunto que certamente interessa aos brasileiros em tempos de seca”, diz Brum.

A professora Sílvia Guterres, da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), teve contato com pesquisadores sul-africanos, no âmbito do Ibas, mas não pôde levar adiante a parceria por conta da interrupção do programa. “Iríamos trabalhar em conjunto no desenvolvimento de novas moléculas para o tratamento de doenças negligenciadas”, diz Sílvia. Segundo Brum, o Brasil precisa ficar atento ao potencial de colaboração com países emergentes, uma vez que compartilham problemas de pesquisa comuns. “A questão é estratégica. É preciso identificar o que cada país tem de melhor e então estabelecer diálogos”, diz ele.

Um exemplo de aproximação entre os Brics foi a edição do simpósio internacional FAPESP Week realizado na China em abril do ano passado. Uma missão precursora visitou a China duas vezes para sondar temas e conhecer interlocutores. “A interação entre a ciência brasileira e a chinesa ainda é incipiente em muitas áreas. E a China é um lugar estratégico para qualquer pessoa que faz pesquisa”, afirma o físico Marcelo Knobel, professor da Unicamp e coordenador adjunto de colaborações em pesquisa da FAPESP. Entre as áreas em que os dois países poderiam colaborar mais efetivamente destacaram-se ciência dos materiais, nanotecnologia, energias renováveis e ciências agrárias. “Cada vez mais se sabe que as cooperações sul-sul, entre países em desenvolvimento, são fundamentais para diversificar a ciência”, diz Knobel.

Em seu laboratório na Unicamp, Knobel mantém diálogo frequente com russos, chineses e indianos. Um deles é Surender Kumar Sharma, da Himachal Pradesh University, na Índia. Atualmente, ele é pesquisador visitante no Departamento de Física da Unicamp, onde realiza o pós-doutorado em materiais nano-híbridos – nanopartículas que combinam material magnético e metal, com possíveis aplicações na construção de equipamentos médicos. Sharma conheceu Knobel em 2007, por intermédio de Ravi Kumar, seu orientador no doutorado, que já colaborava com o brasileiro. Em 2008, ele veio ao Brasil, com apoio da FAPESP, e desenvolveu um projeto sobre nanoestruturação usando feixes de íons. De lá para cá, a colaboração com Knobel se intensificou. “Seria bom se os Brics criassem novos programas de intercâmbio. Juntar esforços para qualificar a pesquisa deve ser a meta dos cinco países”, diz Sharma.

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