Orientando-se com um relógio: o avô do GPS

Substituindo o céu na orientação pela medida do tempo.

A invenção do relógio mecânico

Hoje é comum se ler ou se ouvir comentários de que as pessoas não observam mais o céu, porque será que isto aconteceu? Uma explicação possível é que, se inventou diversos instrumentos que condensam observações e conhecimentos desenvolvidos pela humanidade ao longo de vários séculos, um dos mais antigos é o calendário. Através da análise de algumas das suas características podemos perceber a presença das observações celestes. Temos o dia e também o ano, ambos fornecidos pelo Sol. Há também as fases da Lua bem como as datas que marcam o início de cada estação, que vocês podem relacionar diretamente com as observações das sombras e a tabela com o horário do nascer e do por do Sol.

Os corpos celestes também foram instrumentos essenciais para orientação dos viajantes durante muitos séculos. Por exemplo, se você quiser se orientar pode, no hemisfério norte utilizar a estrela Polar para indicar o norte ou, se estiver no hemisfério sul, a constelação do cruzeiro do sul para saber onde é o sul. Ambos podem ser substituídos pela bússola que determina o norte e o sul a qualquer hora do dia, se não tiver perto materiais magnéticos.

Hoje está se popularizando cada vez mais um instrumento conhecido pela sigla GPS, formada pelas iniciais de Global Positioning System, cuja parte essencial é uma rede de satélites que existe em volta da Terra, onde em cada um deles há um relógio atômico. Colocados num automóvel eles ajudam o motorista a dirigir numa cidade. Isto exemplifica de uma maneira extraordinária como medir o tempo se tornou uma atividade importante e útil para nós até para obter informações onde nós estamos!

Quando se ensina Ciências é importante mostrar eventos e instrumentos que utilizamos e a História por trás deles. Há um antecessor importante, que todos possuímos hoje e cuja invenção permitiu pela primeira vez transformar a medida do tempo em localização, o relógio mecânico e, por isso, vamos começar por um breve resumo da sua história.

A invenção do relógio mecânico tinha como motivação a busca de uma maneira de  medir uma atividade cuja duração fosse bem menor do que o intervalo de tempo determinado pelo dia. Este é um intervalo de tempo muito longo quando comparado com o tempo gasto em diversas atividades cotidianas. Buscando resolver este problema a humanidade inventou diversas soluções das quais vamos relembrar três: o relógio de sol, o relógio de água, a ampulheta.

Os primeiros relógios, e que permaneceram como quase únicos durante muitos séculos, foram o relógio solar e o relógio de água. Da mesma maneira que o Sol é usado para marcar a duração de um dia ele inspirou o  relógio solar. O seu funcionamento tem como base a sombra produzida pelo Sol num objeto. Com o passar do dia o Sol muda de posição em relação a este objeto fixo, e com isto, a sombra produzida também muda. Você pode associar algumas posições da sombra com as horas do dia e assim temos um relógio.  A grande dificuldade está precisão na leitura do relógio de Sol. Como o Sol muda a sua posição em relação à Terra todo dia, a sombra produzida pelo Sol muda todo dia e isto causa uma imprecisão na leitura. A hora mais precisa deste relógio e que também é a mais simples de ler, é o meio dia. Nesta hora a sombra do objeto é a menor possível. Descobrir qual é a menor não é difícil. Há algumas limitações, a primeira é que ele não funciona durante a noite. Depois, se você quiser entender com detalhes o seu funcionamento isto exigirá muito conhecimento matemático. Um instrumento se torna mais disseminado quanto mais simples e mais amplo for o seu uso. Mesmo com estas dificuldades o relógio solar chegou a ter uma versão de bolso, pois o erro cometido é pequeno, menos grave do que não ter idéia da hora. Também é bom lembrar que o ritmo da vida no século XVII era muito diferente. Por exemplo, a vida a noite só passa ser mais intensa com a iluminação em alguma escala na cidade e isto tem pouco mais de cem anos!

Outro relógio muito importante é o de água. A construção deste relógio também apresenta dificuldades técnicas e alguns modelos são difíceis de serem transportados. Este exemplo é de um que está na Espanha, e hoje é uma grande atração turística. Para pequenos intervalos de tempo podia-se usar a ampulheta. Relógios semelhantes com os que nós temos hoje começam a surgir na Idade Média. Você pode perceber isto num livro importante da época, A Divina Comedia de Dante, que comenta a presença dos relógios nas cidades.

No texto “Como medimos a passagem do tempo“, fazemos a analogia entre a maneira de medir comprimento e medir tempo. O funcionamento de um relógio mecânico é similar a maneira que você mede o tempo contando os dias só que, agora, você conta oscilações de um pêndulo. Esta é a razão para os antigos relógios possuírem um pêndulo, que é um movimento periódico, muitas engrenagens, o mecanismo que conta quantas vezes este movimento periódico ocorreu e a corda, fonte de energia. Na verdade isto é que caracteriza qualquer relógio hoje.

A referência mais antiga que consegui do  nascimento do relógio mecânico foi o tratado escrito por Dondi. Um relógio mecânico como o de Dondi, usa o movimento de uma polia para medir o tempo. A polia faz o papel do movimento periódico e da fonte de energia, as engrenagens da figura fazem a contagem. Como não se entendia como este movimento ocorria era difícil torná-lo mais preciso. Posteriormente Jost Burgi constroi um relógio com corda para três meses.

A história do surgimento relógio mecânico também passa pelo nascimento da Física e é um bom exemplo para perceber a relação entre Ciência e Tecnologia. Em 1583 Galileu ainda estudante na Universidade de Pisa, passou a se interessar pelo movimento de corpos pesados que oscilam preso por um fio. Provavelmente ele viu uma luz de óleo balançar. Ele descobre que este movimento possui uma propriedade muito interessante, o período independe da amplitude do movimento, isto se chama isocronismo. Ele parece ter usado o seu pulso para medir este efeito. É curioso que anos depois, um médico veneziano Santorio Santorio, amigo de Galileu, passou a usar este instrumento chamado pulsilogium para medir o pulso de seus pacientes. Provavelmente esta é a primeira vez que se fez isto na medicina.

Galileu não explicou por que o movimento era isócrono isto, só é feito muitos anos depois pela mecânica de Newton. Este movimento é tem outra característica curiosa, ele  não se enquadra no paradigma da Física de Aristóteles. Nos dias de hoje os alunos estudam este problema sob o nome de movimento harmônico simples.

Galileu pensou em fazer este relógio, chegou a fazer um projeto, mas que nunca foi tentado enquanto ele estava vivo. Em 1656 o cientista holandês Christian Huygens  construiu o primeiro relógio baseado no pêndulo.  O relógio construído por Huygens tinha um erro de 1 minuto por dia. Para você apreciar este fato lembre que o dia tem 24 vezes 60 minutos, 1440 minutos e, portanto o seu erro 1 dividido por 1440 era menor do que 0,1%. Posteriormente, num outro relógio, Huygens reduziu ainda mais este erro para menos de 10 segundos, um erro seis vezes menor. Para construir este relógio Huygens inventou diversos mecanismos para manter o movimento e evitar a sua mudança.

A descoberta de novos instrumentos podem ter efeitos importantes na Ciência e na Tecnologia. A invenção do relógio mecânico permitiu diversos avanços e grandes mudanças no dia a dia das pessoas. Um exemplo muito instrutivo de Tecnologia é entender como é ele foi utilizado para resolver um grande problema da navegação, a medida da longitude. Antes da utilização do relógio mecânico a medida da longitude era feita observando o céu.

Como é que o uso de um relógio permite que você possa determinar onde está? Estando numa superfície esférica, como nós estamos sobre a Terra, no texto a latitude, a longitude e o fuso horário explicamos como você pode determinar onde está através de dois ângulos.  Escolheu-se Greenwich em Londres na Inglaterra para ter longitude zero, porque neste local está o Observatório Real, fundado em 1675. A latitude zero é o equador. Por exemplo, a cidade de Campinas, por exemplo, tem latitude 22,9o S e longitude 47,083o O. S é de sul do equador e O é de oeste de Greenwich.

A navegação de longa distância começou em volta da África. Uma das razões é que você tinha o continente para se orientar. Agora imagine que você quer fazer uma viagem numa rota longe de qualquer continente ou ilha, como você vai saber se está no caminho certo? Você precisa de mapas e de uma maneira de determinar onde você está. Conhecer a sua latitude e a sua longitude é uma solução para localização. Resolver este problema foi importantíssimo para a navegação.

A solução do problema longitude motivou o surgimento do avo dos GPS. Em 1714 o Governo Britânico por um ato do Parlamento ofereceu o premio de vinte mil libras esterlinas para quem oferecesse uma maneira de obter a longitude com um erro menor do que meio grau, que fosse prático e pudesse ser usado no mar. A latitude é muito mais simples de medir. A latitude mede o ângulo que você está do equador e isto pode ser obtido utilizando o Sol, o calendário e algumas tabelas. Apesar do ângulo do Sol mudar, você sabe como ele muda, ele se repete todo o ano. A longitude é muito mais difícil de medir. Por exemplo, Galileu tentou resolver este problema usando as luas de Júpiter. O astrolábio foi usado mas tinha um erro muito grande. Para você ter uma idéia do que significa um erro de um grau na sua longitude, ele corresponde a uma distância de aproximadamente 112 km. Por exemplo, você não sabe se está em São Paulo, Campinas, Limeira ou São Carlos. Chega-se a este resultado dividindo-se a circunferência da Terra, de aproximadamente 40000 km, por 360 .

Foi o inglês John Harrison quem ganhou este premio. Ele foi capaz de construir um relógio que tinha uma precisão de um segundo num mês! Um mês possui 259200 segundos. Assim ele tinha um erro de 0,0003 %. Para ganhar o concurso ele construiu uma versão portátil deste seu relógio de madeira. Ao sair ao mar para sua primeira viagem ele foi capaz de corrigir um pequeno erro que havia na longitude de Orford. Como ele determinava a longitude com um relógio? Ele acertava o seu relógio em relação a uma cidade. Hoje o zero é Greenwich. Como uma circunferência tem 360 graus e o dia tem 24 horas, cada 15 graus de longitude corresponde a uma mudança de uma hora, 1 grau 4 minutos. Ao andar no mar você espera o meio-dia local. Neste instante o relógio solar é muito preciso, a sombra é mínima e você sabe que é meio dia naquele lugar. Ao mesmo tempo você lê a hora no relógio mecânico que marca a hora de Greenwich. A diferença entre a hora do relógio e o meio dia lhe fornecerá um intervalo do tempo que você é capaz de transformar na sua longitude. Por exemplo, se o relógio marcar 13 horas então temos uma diferença de 1 hora, ou seja 15 graus do local onde você acertou seu relógio para o leste. Se você vai para leste o meio dia chega antes e se você for para o oeste será depois.

Este é o precursor do GPS. É interessante que neste ponto o homem constrói um relógio mais preciso do que aquele ele pode ler do céu.

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